quinta-feira, 24 de março de 2022

E já se vão (sabe-se lá quantos anos)...

Iniciei este blog há mais de 15 anos, quando trabalhei temporariamente como bancário. Na época, não sabia que era temporário, e o trabalho parecia o mundo todo. O universo todo.

Fiquei sabendo que uma banca de concursos utilizou o meu texto. Nunca me procuraram para saber se eu autorizava o uso (o que eu teria feito com o maior prazer). Seria apenas um gesto de gentileza.

Eu brinquei e fui fazer a questão, que perguntava o que o autor (eu) queria dizer com o texto. Não me lembro se acertei, mas fiquei em dúvida entre duas alternativas. Sabe-se lá o que eu quis dizer. Acho que nada...

Hoje não sou mais bancário e tudo isso faz muitos anos. A vida é um livro aberto e ainda estou (espero) só no começo.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Burocracia e poesia

Hoje, navegando pela internet, descobri que o grande poeta mineiro Murilo Mendes exerceu a função de bancário durante muitos anos.
Aliás, é comum que bancários, funcionários públicos, escriturários, dentre outras tarefas burocráticas, tenham destaque na literatura, a citar o exemplo do nosso poeta maior Carlos Drummond de Andrade, que durante quase toda sua vida exerceu a função nada poética de funcionário público no Ministério da Educação, simultaneamente à publicação de suas poesias.

Para Drummond, foi quase meio século de funcionalismo público e poesia.

Eis alguns trechos da "Confidência do Itabirano", de Drummond, com grifos meus:

(...)

A vontade de amar que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas,
sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança Itabirana.

Será que Drummond tem razão? Será que amar, ou então qualquer tipo de vivência emocional, é o oposto do trabalho, visto na sua acepção mais opressora?
Será que aí está a explicação daquele sentimento de inutilidade que nos toma, no exercício das nossas funções? Será aí a origem daquela falta de empatia, mesmo atendendo dezenas de pessoas por dia, tornando todas elas cinzas, meros objetos, dos quais queremos nos livrar , ao grito de "próximo"?
Talvez seja isso; pode ser que, no fundo, as funções meramente burocráticas tenham essa inerente falta de significado, esse vazio profundo.

Mais adiante, no mesmo poema:

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Uma promessa de glória, de riquezas, para um provinciano de posses, encrustrado na pequena cidade mineira, se dezfaz na constatação trivial do poeta, de que lhe restou apenas essa função, a de funcionário público. Drummond, com seu talento, e de uma forma que talvez estudiosos de literatura possam melhor desvendar, consegue transmitir uma tristeza tamanha no seu relato, como se ser funcionário público fosse algo beirando o lúgubre.

Um videozinho com esse poema, narrado na própria voz do poeta, aqui.
Outro vídeo, um pequeno documentário feito pela Globo News, falando de sua poesia e abordando o lado funcionário público de Drummond, aqui.

sábado, 1 de dezembro de 2007

A demissão

A demissão, certamente, é um tema que ronda as cabecinhas de todos os funcionários de banco.
Os bancários de banco público, concursados que são, não pensam tanto a respeito, exceção feita àqueles em que, na hora em que todos são criados, Deus não carimbou a sua bundinha com a designação "serás bancário" (com cargo, número de matrícula e CPF) e que, por natureza, não aceitam a natureza opressiva e burrocrática desse servicinho tão pouco escorreito e, milagre, guardam interesse em outras coisas que não carimbos, taxas, formulários e procedimentos.

São esses, os protótipos de funcionário público - pois aliam o lado comercial, dinâmico e capitalista do banco à tartaruguice daquele que jamais será mandado embora, salvo alguma cagada excepcional. Eis eles, que carregam menos a opressão da demissão iminente (salvo tempos de FHC), mas os que também, em grande parcela, encaram a profissão como algo temporário para, após algum tempo (anos, décadas?), trabalharem na sua tão sonhada profissão, seja lá qual for.

Já vi bancário de tudo quanto é tipo. Tem o gerente que na verdade é dentista: está juntando alguns milhares para montar o consultório, depois de gastar alguns milhares pagando a faculdade. Tem aquela garota que estuda psicologia, dá aula em ONG's como voluntária nos sábados e é metida a hipponga. Bem que ela gostaria de usar sandálias e camiseta do Projeto Tamar, mas durante a semana se vê obrigada a se enfiar num taillerzinho preto e usar sapato de salto alto. As unhas, impecáveis, e o vocabulário, sem qualquer traço de gíria ou linguagem informal. É só obrigado, senhora, volte sempre etc.

Existe aquele também que sente ojeriza a procedimentos cuja razão de ser mora na obscuridade, que odeia linguajar falsamente polido e sorrisos de gentileza mais amarelos que o sol, que odeia tentar convencer clientes o quão maravilhoso é aplicar seu dinheiro em títulos de capitalização. É bem aquele sujeito que sonha em um dia se tornar escritor, entrevistar pessoas interessantes, sobre assuntos verdadeiramente interessantes, viajar a lugares, adivinha, interessantes, e que pretende ainda ler muitos livros sobre assuntos, bah, interessantes, assim ampliando o vocabulário e melhorando o estilo (principalmente no que se refere a adjetivos).

Para isso, estuda jornalismo à noite, e um dia pretende trocar o caos e o estresse da vida bancária pelo lugar calmo e pacato que é a redação de um jornal diário.
Disse-me que, nas horas vagas, escreve um blog sobre a vida do bancário, deve ser bom, vai lá saber.
O complicado é trocar o salário medíocre do bancário pelo salário mixuruca do estagiário em jornalismo. Por mais desapegado ao dinheiro e ao poder que se possa ser, dá tristeza e melancolia profunda em imaginar o salário de "x" reais se transformar num salário de "x/2" reais todo mês. Dá calafrios e tristeza de afundar os olhos pensar que você vai se tornar aquilo que tanto te atrapalha no seu trabalho e que você pode mandar nele sempre que precisa, que é o estagiário.

Enquanto a decisão inevitável não vem, eu tento fazer aquela coisa que muitos já tentaram fazer (viu, o aspirante a jornalista sou eu, há há). Tento separar a vida pessoal, o próprio pensamento em si, do "ser bancário". Tanta gente faz isso. É fácil.
É demitir-se psicologicamente: se fuder durante 6 horas, todo dia, e depois, aquela coisa, "trabalho no banco, eu? quem me dera".
Odeio tudo isso (nem tanto, vai), e, depois da demissão da minha alma do banco, a alma flutua muito mais leve.